29 novembro 2010

Conto - A Luz Difusa de Um Abajur Lilás e a Eterna Rosa Vermelha.

Capítulo 01 – O Sonho


Estávamos nos idos de 1946, pós-guerra na Europa. Um território destruído pela ambição humana mais uma vez. Madeleine Morgan, nascida e criada na Inglaterra, morava em Ashford na Kent Avenue, 07, em um sobrado de tijolinho aparente com a porta pintada de vermelho, quase esquina com a Magazine Road, perto da rotatória.
Ela havia sofrido com as agruras da guerra, tendo perdido seus familiares nesses anos de fogo e tormenta. Hoje seu lar está reconstruído graças a seus esforços e seu trabalho incessante numa fábrica local.
Madeleine havia conhecido David Justin Keagan um pouco antes do início da guerra, em 1938, em Canterbury, cidade natal dele durante férias que ela tirara na fábrica de bolsas onde trabalhava.
David morava na St.New Ruttington Lane, 09 em um sobrado de 3 andares que foi refúgio do amor mais lindo de que já tivemos notícias. Daqueles que histórias não conseguem contar. Eles se amaram como ninguém nunca havia se amado nesse re-encontro.
A guerra os separou, pois David serviu na Royal Air Force como piloto de avião caça (Spitfire MK IV), completando 23 missões e abatendo 17 aeronaves inimigas. Foram dias, anos incontáveis em que se correspondiam e não conseguiam se encontrar, exceto na semana do Natal de 1941 em Londres.
Os anos se passaram, a guerra terminou e iniciou-se o processo de reconstrução da Europa. Cidades destruídas, lares terminados, corações embotados de tristeza e agonia era o que se via, mas a vida continuava.
O sonho de Madeleine e David era viverem no sul da França, numa cidade onde antigos parentes de Madeleine haviam deixado uma propriedade que, por presente divino, não havia sido destruída nesses anos de desatinos e crueldade. Há muito eles combinavam que iriam se casar e viver o resto de suas vidas por lá.
David estava em Londres onde preparava os documentos para sua mudança e o plano era que ele fosse de avião para Ashford e de lá rumassem por trem até Dover, de onde sairiam, atravessando o canal da Inglaterra até Calais na França, e depois viajariam de carro pela autovia L’Autorute des Anglais até Thérouanne – Rue de Boulogne, 37, que era o endereço dos sonhos dos dois. Uma vida os esperava, definitivamente e para sempre, contemplando o amor construído em tempos difíceis e que sobreviveu a tudo por ser eterno e verdadeiro. Um amor que veio de outras vidas, que sempre existiu.
Madeleine havia vendido a sua casa e livrou-se de todos seus bens, pois iria constituir família e nova vida a partir de agora com David.

Capítulo 02 – A Realização e a Realidade

Chegara o dia finalmente. Dia 07 de Janeiro de 1946, 17:00hs, hora do chá quente com um pingo de leite, e Madeleine chegou à estação de trem de Ashford, onde se encontraria com David.
Ele viria de avião de Londres e eles se encontrariam na estação para embarcar no trem 724 das 19:00 hs com destino a Dover.
Chovia muito lá fora e o frio era gélido, flocos brancos de neve brindavam o encontro que estava por acontecer. A noite começava a cair, escurecia e Madeleine estava em pé, ali na plataforma, acompanhada por sua paixão, por seu destino.
Os minutos passavam e suas mãos suavam dentro das luvas de couro marrom, tal ansiedade que a cercava. O tempo, nosso inimigo, às vezes, não colaborava e o relógio da estação anunciou 18:40 hs. O trem 724 chegou à estação e passageiros desceram conturbadamente. Madeleine em pé na plataforma aguardava David e o último aviso de partida foi dado pelo maquinista através de um apito longo. O mais longo da vida de Madeleine.
David não aparecera. No rosto de Madeleine via-se escorrer uma lágrima solitária como ela naquele momento enquanto o ruído da partida da composição tomou conta da estação. O trem se distanciava decididamente com as poltronas 23 e 24 vazias, escondendo a angústia e o desconsolo.
A estação, agora vazia já, aguardava o próximo trem, o destino¿ Não sabemos até hoje.
No guichê de passagens, Mark Costner, o vendedor de tickets, cochilava a ponto de roncar. Sobrancelhas grossas, tez clara e pele do rosto enrugada pelo frio constante a que se expunha ali no ambiente do seu trabalho. Dormia a estação naquele momento e Madeleine desolada, sofria o seu inconformismo. Ela estava quase congelada pelo vento da tristeza que percorria a plataforma.
Sua boina bege de lã segurava os cabelos negros que em parte viajavam com a brisa forte, fria, cortante, e os seus cachos se misturavam ao seu cachecol na mais longa e triste das esperas.
Outro expresso se anuncia e pára na estação. E depois outro, e outro, e as pessoas apressadas entre malas e volumes desviavam de Madeleine que mantinha junto aos seus pés a sua mala preta enquanto apertava contra seu peito uma valise de tecido cinza.
Na valise, as cartas de David. As cartas que contavam a história de um grande amor, seu único bem e que se misturavam às recordações, presentinhos, que ele lhe enviava constantemente das cidades onde esteve.
Madeleine permanecia estática e o barulho gritante da partida do último trem daquela noite junto com o vapor que se levantava a partir dos trilhos polidos fez com ela abrisse seus olhos castigados. A plataforma estava novamente vazia e David não estava lá. Não havia notícia dele.
A estação fecharia às 00:00 hs pontualmente, pois as viagens haviam sido suspensas pela defesa civil em função de uma forte nevasca que assolaria várias cidades da Grã-Bretanha, com ventos de 130 Km/Hora. Todos deveriam se recolher às suas casas, era o aviso, mas Madeleine não tinha mais casa, ela era espera, e assim, o tempo não existia mais.
Eram 23:38 hs e vagarosamente ela se virou, esboçando uma réstia de vida, e viu encostado na parede um banco azul, já com a pintura meio descascada. Ela abaixou para pegar sua maleta e depois caminhou vagarosamente até o banco e sentou-se.
O frio era intenso ao extremo e seus olhos se fechavam. As pálpebras enrijecidas tornavam o ato dolorido até. Ela tremia compulsivamente e seu rosto assumia o contorno das lágrimas congeladas pelo vento. Madeleine sobrevivia naquele momento apenas. Ela não estava bem.
Meia noite em ponto e a estação foi fechada. Mark não havia percebido Madeleine sentada ali naquele canto. Todos haviam ido embora e ela foi esquecida com seus pensamentos e o seu amor latente e tão distante. Algo havia acontecido, ela sentia.
Em determinado momento um tremor extremo percorreu o seu corpo cansado e sofrido que a tosse ininterrupta castigava. Contrações aceleradas a perturbavam e seus olhos se reviraram nas suas órbitas. Suas mãos se abriram e deixaram cair no colo e depois no chão a sua valise cinza, onde morava a memória de David.
Madeleine estava fraca e nunca havia sido curada da grave infecção pulmonar que adquirira nos tempos da guerra e assim, naquele momento, ela partiu levando a sua angústia e todo o seu desespero.
Sua cabeça pendeu por cima do ombro esquerdo, os braços caíram pelo corpo e não houve despedida. No seu semblante um mistério. Seus lábios esboçavam um sorriso.

Capítulo 03 – O Reviver

Na manhã seguinte, o trem 724 chegou ao seu destino. Acordou Dover com seus guinchos e apitos ensurdecedores. Muita gente na plataforma de desembarque, confusão, idas e vindas, bagagens e os passageiros continuavam a se levantar das suas poltronas, pegando seus pertences e se preparando para descer dos vagões.
Quase no final do tumultuo, ali no vagão 07, poltronas 23 e 24 ainda estava sentado um casal.
Eles descansavam calmamente, sem tempo, enquanto outras pessoas se aglomeravam. Eles se olhavam doce e apaixonadamente e suas mãos se apertavam e dedos entrelaçados trocavam segredos. Era um momento de encanto onde alma conversava com alma e um mundo particular se formava.
O homem levantou-se e aprumou seu sobretudo negro, pegou no guarda-volumes superior e malas e o seu chapéu ainda úmido e o colocou na cabeça, rodando os dedos pela borda da aba. Ele olhou para a sua linda mulher pedindo aprovação, e ela com um sorriso e um ligeiro movimento de cabeça o fez entender que o chapéu negro precisaria ser levemente inclinado; o charme.
Com um breve movimento o homem consertou o seu semblante em concordância com o toque sutil da sua amada e em seguida estendeu sua mãos para ela e a ajudou a levantar-se. As mãos dela esticavam o linho da blusa, abotoou os botões do casaco, endireitou sua boina bege, enrolou seu cachecol no pescoço e calçou suas luvas marrons. As bagagens foram empunhadas... uma valise cinza e uma maleta, e assim eles se dirigiram até a porta do vagão. Pararam por instantes, olharam para fora, respiraram fundo e desceram abraçados, caminhando pela plataforma em direção à vida que os esperava.
Alguns dias depois, contam os moradores de Thérouanne, que a chaminé da casa da Rue de Boulogne, 37, apesar de fechada há anos, deixava escapar fumaça, como se a lareira estivesse acesa. No seu interior vivia um casal que os olhos humanos não podiam ver. Na verdade, ninguém ousava bater à porta ou tentar descobrir o que ali se passava.
O amor prevalecera e o destino se cumpria porque a vontade de Deus era sublime.

Considerações Finais

Na tarde do dia em que Madeleine faleceu um avião do exército britânico havia sofrido avarias no motor, em pleno vôo, durante uma tempestade de neve e desapareceu num dos desastres aéreos mais incríveis da história da aviação.
David havia perdido a hora do seu vôo de carreira que sairia de Londres naquela tarde e como tenente da aeronáutica reformado, ex-combatente, conseguiu embarque numa aeronave da RAF. Os seus destroços foram encontrados tempos depois numa floresta. Sobre uma das asas incineradas uma rosa vermelha permanecia tenra e não há notícias de sobreviventes, pois tripulação e passageiros tiveram morte instantânea segundo avaliação da aeronáutica e da peritagem da polícia.

O corpo de Madeleine fora encontrado sem vida na manhã seguinte na estação e não se sabe qual destino tomou. Seus pertences foram guardados em um armário corroído pela ferrugem na delegacia de polícia cujas portas foram trancadas com cadeado. Nunca ninguém os reclamou.

As residências de David e Madeleine existem até hoje em Canterbury e em Ashford e conservam as suas características originais.

O tempo passou, e após mais de meia década, em Thérouanne, a casa da Rue de Boulogne, 37 continua fechada. Quem passa pela rua à noite pode ver uma luz lilás através da janela, por trás da cortina e pode ouvir risadas e poemas de amor declamados em voz alta vinda de dentro da casa. À porta uma rosa vermelha eterna enfeita a entrada, ela resiste ao tempo mantendo seu frescor e perfume até hoje.
Ninguém ousa tocar a campainha e nem mesmo chegar perto da porta e das janelas da casa que virou o templo do amor maior.

David e Madeleine existiram e existem de verdade no coração de cada pessoa que ama verdadeiramente. Eles viverão juntos para sempre, e assim como a rosa vermelha, seu amor será eterno!

Renato Baptista

14 comentários:

Marilândia Marques Rollo disse...

ESPLENDOROSO TEXTO, MORMENTE PELAS CONSIDERAÇÕES FINAIS, ILUMINADAS PELA "LUZ LILÁS" QUE ATRAVESSA A JANELA DOS SENTIMENTOS.
Abraços com carinho.
Marilândia

Beatriz Prestes disse...

Maravilhoso desde os primeiros sentimentos despertados.
Considerações perfeitas que nos situam, como se lá estivéssemos, desvendandos lugares, detalhes pitorescos perfeitamente introjetados na história.
Em meio ao caos interno e externo, é impressionante como o amor não exige cenários...
Em mim fica a conclusão. A possibilidade tão acreditada se esvai, o amor é realmente verdadeiro, mas impossível, e nada passível de realização.
O amor mais intenso, parece não ter forças de superar o destino.
Teu conto, mexeu muito comigo, emocionou demais...
Que momento lindo, tão perfeitamente escrito, que a cada cena, fui sentindo o cheiro do frio, a dor do esperado e fatídico.
De quando aquele "enfim", parece chegar, quem chega é o final da história em dor.
Melhor eu parar...meu comentário parece outro conto. rsr
PARABÉNS mesmo. Simplesmente MARAVILHOSAMENTE ESCRITO! Envolvente...daqueles que fazem a gente sentir absolutamente dentro da história!
APLAUSOS TODOS!!
Sensacional mesmo! Amei ler!!

Beatriz Prestes

Unknown disse...

Oi amigo,

Eu adorei o conto. Lendo, parecia que eu visualizava cada lugar, cada semblante, cada sentimento.
Pena que eles não se encontraram na estação. Mas estão vivendo um amor eterno aos nossos olhos do coração.
Parabéns por mais esse talento.
Continue com seus contos, amei!!!

Bjos,
*Simone*

O CANTO DE MARIA disse...

Parabéns, Renato!
Interessantíssimo e envolvente !
Uma história que prende .
Sabe , eu tenho uma poesia em que existe também ,um abajur lilás....
Aprovadíssimo!!!
Pode continuar escrevendo contos.
Um abraço de sua amiga,
MARIA NELLY

BRUMA LILÁS disse...

Bom dia amigo Renato!
Uma obra muito bem construída que me prendeu até o desfecho, adorei o enredo, mesmo que o encontro não tenha acontecido acredito num futuro escrito em outros mundos, de um amor além da vida!
Maravilhoso esse teu conto, amei!
bjs Taís Mariano

Versos e Tintas disse...

Adorei seu texto, se não a sua praia deveria ser, pois a clareza de detalhes, temos a impressão de estarmos vivendo aquele momento. Maravilhoso.

Marilza Rezende

Karina Aldrighis disse...

Linda e envolvente história, amigo, fiquei muito emocionada!Parabéns pela iniciativa, você se expressa bem em prosa ou em em verso!Continue! Abraços

Zezinha Lins disse...

Renato Batista!!!

Sempre com uma novidade,sempre nos impressionando com a sua extrema capacidade de "viver" e nos levar juntos nessas viagens fabulosas. PARABÉNS, meu amigo querido.

Bjos!!

VGitana disse...

Parabéns, Renato!
Muito bom mesmo!
Você sempre surpreendendo, está aprovado, continue escrevendo mais contos, amei!!!
Besos no Core
VGitana

TÂNIA SUZART ARTS disse...

Parabéns Renato!
Seu conto é um brinde ao amor eterno.
Fiquei presa a ele do começo ao fim.
Continue com esta nova etapa de criação.
Estarei aqui aguardando novos contos.
Abraços.

GILDA PINHEIRO DE CAMPOS disse...

RENATO QUERIDO:
Sensacional...vc é um grande escritor , dos que fazem o leitor vivenciar o que está lendo e ávido de completar a leitura, prende,surprende,amei...
Parabéns mesmo!!!
Abraços
Gilda Pinheiro de Campos

Eliane F.C.Lima disse...

Renato,
Belo texto e que segue a sua função ficcional mais forte, que é a de prender a atenção do leitor encantado. Todo mundo adora uma história e se é de amor - a realidade cruel do dia a dia não tem deixado as pessoas com muita confiança nisso -, de amor verdadeiro, correspondido, é o ideal. Obrigada pelo bom momento que me proporcionou.
Eliane F.C.Lima

Sonhadora (Rosa Maria) disse...

Meu querido Renato

Simplesmente maravilhoso...vive-se a emoção enquanto se percorrem as linhas...não tenho palavras, pura sedução.

Deixo um beijinho
Sonhadora

Clecilene Carvalho disse...

Muito bom!!!!!!!! Espero pelos próximos...
Visualizei cada cena e isto é o fascinante dos contos. PARABÉNS.